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Karine Dias: após tirar os pés dos corres, ela estende a mão aos egressos

Branca e de classe média, Karine entrou no crime em busca de adrenalina e saiu de lá porque achou as portas abertas. Hoje ela oferece oportunidades a ex-detentos: “Não falamos em reinserir: a maioria nunca foi inserida na sociedade”

Claudia Belfort, especial para Ponte Jornalismo

Karine Dias Vieira passou quase metade de seus 40 anos no crime. Parou ao ver um parceiro morrer por complicações decorrentes de um tiroteio em uma tentativa de assalto. Decidiu, então, tirar os dois pés dos corres, para em breve estender as mãos a quem, como ela, deseja levar uma vida dentro da lei.

Com as unhas sempre impecáveis, responde rapidamente a dezenas de mensagens que chegam por Whatsapp a todo momento. Algumas delas de ex-presos, querendo uma segunda chance no Responsa, empresa social criada por ela para inserir egressos do sistema prisional no mercado de trabalho.  Karine é avessa ao termo reinserção social. “A maioria nunca foi inserida nem no mercado de trabalho, nem na sociedade, por isso não podemos falar em reinserir”, explica. “Nós temos ainda é que inserir”, diz.

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Os dados mostram que ela tem razão. Com a terceira maior população prisional do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e Rússia, das 726,354 mil pessoas em privação de liberdade do Brasil, 54% têm entre 18 e 29 anos, idade em que os jovens começam a entrar no mercado de trabalho, e 75% não chegaram ao ensino médio. Quando foi presa, Karine se encaixava nesse perfil. Não havia terminado o ensino médio, tinha 25 anos e só havia tido um emprego.

Ciente de que nasceu privilegiada, essa mulher branca, de cabelos lisos, olhos castanhos claros, vem de uma família de classe média da zona leste paulistana. Estudou em escolas particulares, só frequentou um ano no ensino público, quando repetiu a 8ª série do ensino fundamental. Nas férias, viajava para o interior ou para a casa de praia do pai. A separação dos pais, quando ela tinha 4 anos, nunca foi motivo para que lhe faltasse nada em casa. Não era do tipo que precisava correr atrás.

Na zona leste paulistana, Karine caminha para pegar o metrô e chegar ao trabalho | Foto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Era, sim, uma adolescente inquieta, que tinha um relacionamento tenso com a mãe e que preferia ir para a rua encontrar os vizinhos do bairro a ficar brigando em casa. Entre esses amigos, alguns faziam corres — uma das palavras usadas para designar crime. Aquela vida de adrenalina a fascinava e, aos 14 anos, estreou na onda da turma. Se teve medo? “Sempre fui meio destemida. Ia, fazia e pronto”, conta Karine.

Essa característica abriu-lhe as portas para novas oportunidades na trilha tortuosa por onde passou a caminhar. Faturava um bom dinheiro para as necessidades de uma adolescente e só tomou enquadros quando foi pega fumando maconha na rua. “Um dia a viatura me levou de volta para casa. Minha mãe queria me fuzilar”, lembra.

A gravidez precoce aos 17 anos interrompeu a caminhada. Do namoro com Rogério, nasceu Tainá. Foram quase três anos longe dos corres. Trabalhava como agente de reservas da extinta companhia aérea Varig, cuidava da casa e da filha. A dependência química do marido, no entanto, começou a atrapalhar a relação. Ele, além de não participar das tarefas domésticas, ainda roubava Karine. “Ele pegava meus passes de ônibus para trocar por droga”, conta. As brigas eram constantes e violentas, o que levou ao fim do relacionamento. Chegaram a tentar uma reconciliação, que, pelos mesmos motivos da primeira separação, não deu certo.

Sem condições de sustentar a casa, estudar, trabalhar e cuidar da bebê, Karine entregou a menina para a sogra cuidar. No lugar de mergulhar nos estudos e no trabalho, a adrenalina acenou para ela novamente. Ia para baladas à noite, encontrava amigos que estavam no corre e, por chegar quase de manhã em casa, no dia seguinte não tinha condições de ir ao trabalho. Foi demitida num corte de pessoal que a Varig fez na época da fusão com a TAM.

Acendeu-se o sinal verde para ela voltar para a vida errada. E voltou em grande estilo. Começou a fazer trabalhos para um preso da penitenciária Presidente Bernardes, região oeste do Estado de São Paulo, bem situado no crime organizado, e que era dono de várias lojinhas (pontos de venda de drogas) na Vila Prudente, zona leste da capital paulista. Os negócios prosperavam e ela chegou a contratar duas outras amigas para trabalhar com ela na distribuição. Foi um alívio, porque ela não precisava ficar se expondo, e um erro pelo qual iria pagar caro.

Uma das suas colaboradoras, aqui chamada de Lúcia (nome fictício), se envolveu com um traficante, preso de prestígio no mundo do crime, e passou a fazer os próprios corres. Como as duas ficaram próximas, Lúcia, às vezes, dormia na casa de Karine. Mais um erro.

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Na manhã do dia 19 de outubro de 2005, a polícia invadiu a casa de Karine e a flagrou, no banheiro, tentando se desvencilhar de uma mercadoria que Lúcia guardara em sua residência. “Eu nunca deixava produto lá, eu pagava um rapaz da rua de cima para guardar para mim.” Lúcia, que dormia no momento da ação, também foi detida, mas não assumiu ser a dona da droga.

“Apesar de a mercadoria não ser minha, eu nunca ia caguetar ela. Era papel dela contar, não meu”, diz Karine, que em nenhum momento entregou a colega, mesmo quando foi aconselhada pela advogada a fazê-lo, sob o risco de ser condenada. “Eu carrego uma ética”, diz com a fala firme.

Bem-vinda ao caldeirão do inferno

Antes da prisão efetiva houve, segundo ela, uma tentativa de achaque por parte dos policiais, que queriam R$ 200 mil de propina para liberá-las. “Ofereci R$ 50 mil, mas não teve acerto, era perto do Natal, os caras queriam dinheiro”, lembra. Sem acordo, as duas pernoitaram na delegacia numa cela onde também havia homens. Por sorte, elas conheciam gente de renome no crime, e a noite correu tranquila. No dia seguinte foram transferidas para o Dacar IV, hoje CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros, que à época também abrigava mulheres.

No café da manhã, em casa, se preparando para sair | Foto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Bem-vinda ao caldeirão do inferno”, foi com essa frase e bateção de grades que Karine foi recebida pelas presas do seguro, local onde ficou provisoriamente antes de subir para o convívio. Ela não se intimidou, aliás algo que parece nunca acontecer. Pelo contrário, aproveitou o conhecimento que tinha com gente grande do crime organizado, apresentou suas credenciais e foi morar, com outras 25 mulheres, no QG Geral, a cela da disciplina do prédio. Disciplina é como se chama o detento ou a detenta responsável pela organização e comportamento do grupo numa unidade ou ala prisional. Lá tinha chuveiro quente, TV, DVD, inclusive serviço de comida delivery, que era facilitado, ilegalmente, por agentes penitenciários. Karine tinha dinheiro, posição e ainda fazia um dinheirinho como vendedora de linhas telefônicas dentro do Dacar IV, o que lhe garantia acesso a um mínimo de conforto, se é que há conforto numa penitenciária.

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A advogada contratada pelo pai de Karine, mesmo sem a caguetagem da cliente, trabalhou com afinco e conseguiu sua absolvição por inconsistências no processo. Em abril de 2006, ela deixou a detenção e foi se abrigar na casa da avó paterna, na Vila Antonieta, também na zona leste. Depois de uma semana resolveu ir para Lins, no interior paulista, ficar perto da casa da mãe de seu namorado, que estava preso em Avaré. Vivia de bicos — até na colheita de tomate trabalhou — e de uma ajuda de custo que recebia mensalmente do pai. Não demorou muito, descobriu que o namorado havia voltado para a ex-mulher, pela boca da própria, e o namoro terminou.

Sem namorado, sem emprego, sem corres e avessa à  vida com pouco dinheiro, Karine voltou para São Paulo, onde foi trabalhar num privê, eufemismo para casa de prostituição. Era gerente, trabalhava e morava no local. O patrão era ruim de pagamento, atrasava o salário e ainda queria que ela limpasse os quartos do estabelecimento. “Imagina, eu pegando camisinha? Não dava”, conta com cara de nojo.

Deixou o privê e voltou para a área de vendas de drogas, que chegava a lhe render R$ 2 mil por semana e onde pode exercitar sua veia empreendedora, tornando-se em pouco tempo responsável pela organização, distribuição e recolhe do faturamento das drogas na Luz, região central de São Paulo. Mais uma vez teve problemas para receber sua parcela mensal e, à convite da tia materna, voltou para os braços da família.

Ela estava com sete meses de gravidez, do marido Leandro, 35 anos, que conhecera na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (Grande SP), no dia de seu aniversário, em setembro do ano anterior.  A paixão entre os dois foi quase imediata. “Um dia eu perguntei para ela: quer ficar velhinha comigo? Eu tenho um monte de anos para tirar… ela topou”, conta Leandro, que ainda está cumprindo pena. Em agosto de 2007 nasceu o primeiro filho do casal, Ryan.

Foram seis anos de namoro. Em 2012 eles oficializaram a união, que gerou dois filhos. Como Leandro estava preso, o casamento se deu por procuração. Ele designou um procurador, que o representou no cartório. O relacionamento chegou ao fim no ano passado.

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Morando com a tia, casada, mãe de um bebê, Karine tinha todos os motivos para se aquietar um pouco. Tinha, mas isso não é para ela. Logo após o nascimento de Ryan, conheceu um rapaz, que se tornou um companheiro de quadrilha de assaltos, e lá estava ela nos corres novamente. Saía de mansinho, para cometer delitos, ainda de madrugada, pé ante pé da casa da tia Tatá, que diz nunca ter percebido essa peripécia da sobrinha.

Livramento

Seguia nessa vida, até que um dia estava numa Igreja e a pastora, sem mais, nem menos, dirigiu-se a ela e disse: amanhã você vai passar por um livramento. Passou. Durante a cena de um crime, um de seus parceiros foi baleado e acabou morrendo alguns meses depois por complicações decorrentes do ferimento no tiroteio. Com a morte do rapaz, o caso, que ainda estava sendo investigado, foi encerrado, livrando Karine, que era suspeita de envolvimento. “Deus tirou a vida de uma pessoa para livrar a minha. Isso me abalou”, conta.  “E eu sou muito temente a Ele.”

Na cozinha de casa | Foto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A partir daí deu-se início um processo de reflexão sobre o destino da própria vida e sobre o exemplo que ia deixar para os filhos. Decidiu sair do crime, concluiu o ensino médio e, via Enem, conseguiu 100% de bolsa para cursar assistência social numa faculdade em São Paulo. Seu objetivo: trabalhar com o universo do sistema prisional.

A renda caiu para cerca de R$ 700 por mês, somando o que recebia como atendente numa papelaria do bairro e bicos numa lanchonete aos finais de semana. “Quem segurava as pontas da casa era a minha tia”, lembra. “Karine é um milagre de Deus”, conta a professora aposentada Elza Dias Lopes Ferreira, 79 anos, a tia Tatá, que ainda hoje dá suporte à sobrinha cuidando dos seus dois filhos enquanto ela trabalha.

De uma vida com perfumes caros, roupas e sapatos de marca, Karine passou a viver como uma pessoa comum, trabalhava de dia, estudava à noite, tendo que se virar como o salário de secretária, função que passou a exercer num escritório de advocacia, depois que deixou a papelaria. Esse período foi só uma transição entre o passado no crime e a vida dedicada aos egressos que tem hoje.

Logo que formada, ela entrou numa ONG que atendia jovens e adolescentes recém saídos da Fundação Casa. Fazia junto com os garotos um plano de perspectiva de vida. “Dentro desse plano, ele tinha que voltar para a escola, fazer um curso técnico ou arrumar um emprego”, conta.

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Lá conheceu Chineider Pinheiro, coordenador do AfroReggae,  ONG carioca que usa a arte e a cultura para reduzir a desigualdades e criar oportunidades para afastar jovens da influência do tráfico. Um dos braços dessa ONG é o Segunda Chance, focado em inserir integrantes da comunidade e egressos do sistema prisional no mercado de trabalho, que já teve uma representação em São Paulo. Os quase dois anos trabalhando com medidas socioeducativas, aliados à vontade de se dedica profissionalmente a egressos, a credenciaram a atuar no Segunda Chance, na capital paulista, do qual veio a tornar-se coordenadora.

A iniciativa, no entanto, não vingava, o empresariado de São Paulo era resistente a contratar pessoas que passaram pelo sistema. Karine então resolveu mudar a forma de trabalhar e reescreveu o projeto do Segunda Chance num modelo que viria a formatar no futuro seu próprio negócio social.

Ela percebeu que, para inserir esse público no mercado de trabalho, era preciso trabalhar as outras demandas deles. “Eles têm demandas como baixa escolaridade, conflitos ou ausência de vínculos familiares, alguns têm problemas de drogadição e de moradia, muitos vão para centros de acolhimento”, explica. Segundo ela, é preciso ajudar essas pessoas no encaminhamento para a resolução desses problemas.

Mulher de Responsa

Por conta de dificuldades financeiras que abalaram estruturalmente o Afroreggae, a ONG acabou extinguindo a posição em São Paulo e Karine resolveu empreender. Em novembro de 2017, ela criou sua própria agência de emprego para egressos: o Responsa, que teve apoio do Instituto Ação pela Paz, e hoje é um dos participantes do programa de fellows do Instituto Humanitas360. No ano passado, dos 618 egressos dos sistema penitenciário atendidos pelo Responsa, 355 conseguiram espaço no mercado de trabalho.

Na sede do Responsa, no Espaço Civi-co, em Pinheiros, zona oeste paulistana, em 2019 | Foto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para ajudar a esse público a passar no processo seletivo, o Responsa oferece curso de capacitação mensal, com orientações desde a postura que se deve ter numa entrevista ao uso de roupas e linguajar adequados.  Menos de 5% dos seus atendidos reincidiu até hoje.  Além dos treinamentos, são oferecidas palestras motivacionais, como a realizada em maio de 2019, quando Karine levou o rapper Dexter — ele passou 13 anos no sistema penitenciário paulista — para falar para cerca de 60 egressos. “Andem com pessoas que são importantes para vocês, que vão trazer coisas importantes para vocês, como um livro, uma palavra, um abraço, um sorriso,  não armas, não drogas, não cadeia, morô”, foi uma das mensagens que o artista passou nas suas quase três horas de conversa com a audiência.

Reunião de trabalho do Responsa no Espaço Civi-co, em 2019 | Foto Daniel Arroyo/Ponte JornalismoFoto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Vários dos egressos foram empregados pela Grin, empresa de compartilhamento de patinetes e bicicletas com sede em São Paulo. Eles trabalham nas ruas como cuidadores da cidade, ou seja, além de acionarem a empresa no caso de aparelhos quebrados ou descarregados, orientam a população sobre o uso correto do aplicativo, sobre a idade mínima para usar tais ferramentas de mobilidade. “Contratar egressos vem de uma inquietação nossa, de que a gente precisa inserir no mercado de trabalho aquelas pessoas que realmente necessitam ser inseridas”, diz Johnny William, gerente de responsabilidade social da empresa. “Temos iniciativas tanto com egressos, com carroceiros e com moradores de rua. E é uma relação de ganha-ganha, porque a oportunidade que a gente gera para essas pessoas traz uma dedicação ao trabalho que às vezes a gente não consegue enxergar quando abre vagas oferecidas em sites”, comenta.

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Os números, que podem ser motivo de orgulho para uma jovem empresa social, são um grãozinho de esperança ante as dezenas de milhares que voltam à liberdade todos os anos. Quem se dispõe a recebê-los? Dexter dá a dica. “Bob Marley disse uma vez  ‘se todos derem as mãos, quem sacará as armas?’. Hoje eu trago a mesma pergunta para a sociedade”, provoca.

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