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Anderson Pereira: o sonho de um legado

Ele teve que sustentar a família muito cedo, antes de aprender sobre certo e errado. Acabou internado quatro vezes na Fundação Casa, antes de um projeto social lhe mostrar uma saída

Claudia Belfort, especial para Ponte Jornalismo

Quem vê Anderson Felipe Pereira de Carvalho de camisa social, cabeça erguida e fala segura dificilmente imaginará o menino de sete anos que apanhava da mãe quando preferia ficar brincando em casa a ir atrás de comida na rua e que passou a maior parte da adolescência na Fundação Casa de São Paulo.

Era o início dos anos 2000 e ele morava num casarão, uma espécie de cortiço, ocupado por famílias carentes nos Campos Elíseos, região central da capital paulista. É de lá que guarda as mais remotas lembranças: as peladas de futebol com os irmãos e os pés machucados de tanto jogar.  Narra esse momento da vida sorrindo com os lábios e com os olhos, como se tivesse tido uma infância.

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Ele muda de expressão quando o assunto são os pais, “aí minha vida começa a complicar, não tenho referência nem de pai, nem de mãe”. O pai veio a falecer de cirrose e a mãe, Andréa, hoje mora em Campos do Jordão, no interior paulista, com uma filha, para tentar ficar longe do crack que a consome há anos. Além dos jogos de futebol, o período que corresponderia à infância de Anderson foi marcado pela obrigação de “se virar” para sobreviver. “Eu era cobrado a fazer o papel de meu pai”, diz.

Filho de mãe dependente química, pai alcoólatra e neto de pessoas em situação rua, o menino tinha, junto com os irmãos, a responsabilidade de trazer comida para a família de oito pessoas, e sem ainda ter noção do certo e errado. A mãe, Andréa, de vez em quando até tentava educar os filhos, lembra Anderson, ao mesmo tempo em que fazia pressão para que os rebentos trouxessem provimentos para casa. Ele e os irmãos nem sempre tinham sucesso na tarefa e a falta de comida era frequente. Um dia, ele lembra ter chegado em casa morrendo de fome, após revirar os armários encontrou só um pacote de côco ralado. Não teve dúvidas, misturou o produto com água e comeu, achando delicioso. “É, tem alguns traumas aí que são complicados”, afirma.

Anderson no seu atual trabalho, uma corretora de seguros | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para driblar a fome, suprir a família e também para não apanhar, o menino começou pedindo esmolas na porta de supermercados, restaurantes, e logo aprendeu com outros companheiros na rua que existiam meios mais rápidos e mais rentáveis para ajudar seus cinco irmãos e seus pais a comer. Os caminhos, porém, eram tortos e ele caiu pela primeira vez aos 12 anos. Foi pego por seguranças da estação de metrô República, na região central de São Paulo, junto com outros meninos, logo após praticarem um furto.

Encaminhado à Delpom (Delegacia de Polícia do Metropolitano), na Barra Funda, zona oeste, de lá seguiu para a Fundação Casa, espaço do Estado de São Paulo idealizado para a ressocialização de jovens em conflito com a lei.  Por ser primário, Anderson permaneceu três dias no local e foi entregue à família de volta ao casarão.

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Foi a primeira das quatro vezes que Anderson cairia numa das 477 unidades de internação e de semiliberdade que existem atualmente no  Brasil, das quais 146 ficam em São Paulo, segundo Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos.  Na Fundação Casa, como no restante do País, a maioria cometeu atos infracionais classificados como análogo ao tráfico de drogas e ao roubo.

Assim como Anderson, e 59,08% dos adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no País são negros, em São Paulo esse índice chega a 69,60%, de acordo com a Fundação Casa (dados de novembro de 2017). “O único acesso a serviços públicos que a população pobre e negra tem é à Justiça”, diz Railda Alves, presidente da  Associação de Amigos e Familiares de Presos – Amparar. Para ela o fato de a maioria dos reeducandos serem negros mostra um racismo institucionalizado no Brasil.

“Existe no Brasil uma abolição inconclusa. É um grande País racista”, diz a presidenta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCRIM, Eleonora Nacif, que aponta um racismo estrutural na nação brasileira, explícito também pela sub-representatividade de negros nas relações de poder. “A maioria dos juízes sentenciantes é homem, branco e de classe média alta”, aponta.

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Se na rua e em casa, a vida de Anderson era complicada, a de estudante também não era fácil. Anderson repetiu a terceira série três vezes ora por desempenho, ora por faltas. Por seu estado de extrema pobreza, chegou a ser ridicularizado por colegas. A família, que mal tinha recursos para comer, sequer cogitava comprar uniformes. Como em casa não havia separação de roupas entre os irmãos, todos vestiam o que estava disponível, independentemente de caber ou não. Certo dia, sem ter o que usar do seu tamanho, Anderson foi para a escola vestindo uma camiseta do pai, cujo comprimento ia até o seu joelho. “Fui muito zoado, muito, me irritei, briguei, falei palavrões e terminei suspenso”, lembra. Segundo ele, era apenas um aluno matriculado, que sem estímulo em casa para seguir nos estudos cabulava aulas frequentemente e ia para a rua.

Em sua casa de dois pisos, na Favela do Moinho | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Após sua primeira passagem pela Fundação ficou livre por menos de um ano e logo entrou no índice de cerca de 22,69% de reincidência dos jovens em conflito com a lei que passam pela instituição (dados de 2018). E em um ano caiu mais duas vezes. Na última, pegou dois anos e meio de internação. “Foi um baque, comecei a repensar minha vida”, conta. Para Eleonora, a reincidência está relacionada a uma ausência do Estado. “O Estado negligencia alguns espaços e algumas áreas como saúde, educação, moradia o que acaba propiciando alguns jovens em formação a agirem de determinada maneira”, argumenta.

Internado na unidade Franco da Rocha, a 38,9 quilômetros (duas horas e meia de transporte público), da Favela do Moinho, no bairro dos Campos Elísios, região central de São Paulo, e para onde a família havia se mudado depois que o casarão começou a ruir, Anderson ficou um ano e oito meses sem visita. Ficar longe da família no período de internação não é incomum. Levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público mostrou que, em 2013,  em pelo menos 20% das unidades de internação inspecionadas no País a maioria dos internos estava abrigada distante da residência dos pais e/ou responsáveis, o que dificulta o acompanhamento familiar no cumprimento da medida socioeducativa.

Foi justamente num domingo de visita que o destino de Anderson começaria a mudar. Sozinho, sentado e cabisbaixo, no pátio, como costumava ficar enquanto via os outros adolescentes receberem familiares, ele foi abordado por um também Anderson, do Instituto Papel de Menino, organização sem fins lucrativos que busca a reinserção na sociedade de jovens em conflito com a lei. O voluntário puxou conversa e descobriu que o jovem ainda não havia sido visitado pela família.

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“Você precisa ver sua mãe, vamos trazer ela para te ver”, disse ao adolescente, na época, a diretora do Instituto, Silvana Goulart Urbani. Anderson deu à dupla as orientações de como chegar ao barraco da mãe na Favela do Moinho. Espremida entre dois ramais da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), é uma das mais carentes de São Paulo, alvo frequente de incêndios suspeitos e ações truculentas da Polícia Militar.

“Então eu expliquei para ela: ‘você pega, entra na favela, vai até o prédio tal, sobe três andares, conta três barracos, o terceiro, uma casa rosa, é o da minha mãe.” Silvana foi. Encontrou a mãe de Anderson cozinhando restos de comida num fogão improvisado com tijolos e morando num barraco escuro, cheio de sucatas e, no lugar no colchão, apenas um pedaço de espuma.

Marcaram a visita para um domingo e, quando Silvana foi buscá-la na Favela do Moinho, Andréa estava toda arrumada, com roupas que conseguira na própria comunidade. Não foi daquela vez. Ao chegar na unidade da Fundação Casa pediram seu RG. Ela não tinha o documento. Não tinha nenhum. A visita não se consumou. Foram quase dois meses até Andréa conseguir primeiro a certidão de nascimento, documento necessário para tirar a carteira de identidade, e só depois conseguir o RG.

Rosângela e Anderson na sala de casa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Quando minha mãe me visitou ela só pedia perdão, perdão, perdão. Depois me aconselhava, puxava minha orelha por eu estar lá [na Fundação]”, conta Anderson, que naquele momento se dividia entre a mágoa de não ter sido cuidado adequadamente pela mãe e as lembranças das poucas vezes em que ela tentou lhe explicar a diferença entre o certo e o errado.

A partir daí, o vínculo com o Instituto Papel de Menino só se fortaleceu e Anderson começou a participar das atividades que a organização promove desde de 2008 na Fundação Casa. Abalado pela morte do pai e do irmão mais novo no mesmo ano de 2010, Anderson, que não via mais futuro para si, começou a sentir o desejo de dar uma casa para mãe e melhores condições para os irmãos. “Muitas vezes esses jovens acham que não têm sonhos, não vislumbram um futuro”, afirma Silvana, completando que é preciso despertar essa capacidade neles.

“Eu fiz 17 cursos na Fundação, só um me interessou, que foi o de percussão”, conta. Esse curso marcaria seu futuro e, quem sabe,  seu legado.

No início de 2012, Anderson saiu da Fundação Casa. Em semiliberdade, retornou à Favela do Moinho e procurou o Instituto, que lhe deu a primeira chance, como artesão para confecção de bolsas. Foram nove meses de um ótimo relacionamento até que ele voltou a reincidir e, consequentemente, retornou à Fundação. “Agora está tudo acabado, não tem mais jeito, já estava colocado para mim que minha vida era pré-determinada para isso”, pensou à época.

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Mesmo assim, o projeto continuou apoiando Anderson. “Eu ficava pensando: esse pessoal gosta tanto de mim, quer muito que eu trabalhe, para eles deve ter alguma coisa em troca”. Um dia resolveu perguntar a Silvana porque ela o estava ajudando tanto e ouviu como resposta: amor.

Em 12 de dezembro de 2012, um ano e meio depois de sua quarta passagem pela Fundação, Anderson saiu disposto a mudar de vida. Batalhou trabalho e conseguiu uma posição informal numa empresa de aparas de papelão, onde ficou quatro meses. Era dedicado, mas uma discussão entre colegas acabou levando-o à demissão.

No dia seguinte saiu para procurar emprego. Por esses acasos da vida, nesse mesmo dia passava em frente a um açougue quando viu uma vaga de entregador. Entrou, se apresentou e foi contratado imediatamente. Em um ano foi promovido a atendente e logo a açougueiro. Nessa época ele já estava com Rosângela.

Os filhos de Anderson vivem a infância que ele não teve | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O casal se conheceu na casa de um parente de Anderson, que logo gostou daquela garota magrinha, falante, com jeito decidido e riso fácil. Na terceira vez em que se viram, exatos 28 dias depois dele ter reconquistado a liberdade, Anderson mudou-se para a casa dela. “Eu disse para ele: eu não tenho tempo para ficar namorando, tenho dois filhos, se tudo quiser vem morar comigo, trabalha e me ajuda a criar eles”, conta Rosângela. E assim foi. Eles tiveram mais três filhos, duas meninas e um menino, e construíram uma casa de dois pisos, três quartos, de blocos sem reboco e com eletrodomésticos novinhos, na Favela do Moinho.

O destino virou mais uma vez para Anderson quando, em 2005, novamente o Instituto Papel de Menino lhe ofereceu uma vaga de trabalho. Era de office boy na Nsure, uma corretora de seguros voltada para pessoas jurídicas.

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Anderson era a segunda tentativa da corretora de ressocializar um egresso através da oferta de trabalho. A primeira durou apenas um mês. Eles não desistiram, e dessa vez procuraram o Instituto para ajudá-los na contratação de outro egresso. “Eu acredito que a gente tem que confiar nas pessoas”, diz Luciano Henrique Ribeiro, um dos sócios da empresa. “A gente não pode viver a vida com o pé atrás, senão a gente não se entrega para nada, nem para um relacionamento amoroso, nem para amizade, nem para relacionamentos profissionais”, completa.

A vaga ofertada, ao contrário da do açougue, onde já era registrado, tinha como proposta inicial 9 meses sem carteira assinada e um salário R$ 200 menor que o de açougueiro.  “Mas eu pensei estrategicamente, no açougue no máximo eu viraria gerente, no escritório havia mais possibilidades de crescimento”, conta o jovem, que até pouco tempo acreditava que seu destino estava predestinado a uma vida à margem da lei. Acertou na estratégia.

Anderson trocou o açougue pelo escritório | Foto Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Ele chegou aqui tímido, não falava olhando nos olhos, olhava para baixo, tinha dificuldade de se comunicar”, conta Luciano. Desde sua contratação, Anderson já recebeu duas promoções, de office boy passou a auxiliar administrativo. Hoje administra uma carteira de clientes de pequeno porte e sonha em ser uma pessoa de sucesso quando tiver nos seus 30 anos.

A experiência deu tão certo que a corretora contratou outro egresso da Fundação Casa, William Oliveira, que entrou  também como office boy e hoje atua na área comercial da empresa. A dupla alimenta um sonho em comum: criar um projeto social de percussão na Favela do Moinho, para tirar as crianças da mira do tráfico.

“O que eu quero que os meus filhos digam de mim é que meu pai passou por dificuldades, deu a volta por cima, passou por um processo de resiliência e deixou um legado dele, que é um projeto social”, diz Anderson.

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