Back to the top

Andressa Brasil: ‘Tristeza não leva a nada’

Agredida e violentada na infância por ser travesti, Andressa luta hoje contra a falta de oportunidades para superar o estigma de ex-presidiária, mas sempre arruma um jeito de ajudar quem precisa

Os dias que passou na prisão foram só um capítulo das longas temporadas de violência que marcaram a vida de Andressa Brasil. Ao deixar o cárcere, prometeu a si mesmo que nunca mais voltaria àquele lugar. Cumprir a promessa não é uma tarefa fácil para uma travesti que não sabe ler, nem escrever, e que só tem a prostituição como ofício. Mas ela vem conseguindo, um dia após o outro.

Leia também: Bruna Simo: do sonho ao cárcere, e de novo ao sonho

Apesar das dificuldades, Andressa gosta de levar o cotidiano com um sorriso no rosto. “A vida tem que ser felicidade, não só tristeza. Tristeza não leva a nada” é um de seus lemas.

Andressa Brasil: “A vida tem que ser felicidade, não só tristeza” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Ela se cansou das tristezas porque já teve muitas delas, demais, desde muito cedo. No orfanato onde passou a infância, logo que notaram sua identidade de gênero, passou a ser humilhada e chegou a ser estuprada. Ao lembrar do orfanato onde cresceu, usa um ditado geralmente associado às cadeias: “Ali é onde o filho sofre e a mãe não vê”.

Quando completou dez anos, conta, sua mãe conseguiu resgatá-la do orfanato e levá-la para sua casa. Seus dias ali, porém, não foram muito melhores. A fome era comum. “Tinha dia de eu acordar para tomar um café e e não tinha dinheiro nem para um pão digno, era só fubá com água”, recorda.

Andressa na sua casa em Itaquaquecetuba (Grande SP) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Logo descobriu que o fato de ser travesti despertava em casa um ódio muito parecido com o que havia conhecido no orfanato. “Minha mãe me discriminou muito. Sofri muito com ela. Me batia todos os dias”, recorda. Mãe e irmãos lhe deixaram um recado claro: só a aceitariam em casa se ela se vestisse de homem. “Você vestida de mulher eu não aceito”, ouviu.

Leia também: Uma pessoa trans é morta a cada 48 horas no Brasil

Acabou acolhida por uma amiga, Vanessa Patrícia, que e revoltou ao ver o que a família fazia com Andressa. “A mãe cortava o cabelo dela, fazia ela se vestir de homem, colocava ela para dormir do lado de fora de casa. Eu sempre tive muito dó sobre essa parte. Eu via e não achava que um ser humano pudesse ser tratado assim”, lembra. Enfrentando a própria mãe, Vanessa começou a abrigar Andressa em casa sempre que a tensão na casa da amiga aumentava demais.

Hello Kitty e Meninas Superpoderosas nas costas de Andressa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

As duas ainda eram adolescentes quando decidiram “jogar a vida para o alto” e ir para as ruas. Andressa tinha 13 anos e Vanessa, 15, quando colocaram silicone nos seios e passaram a se prostituir.

Menos do que uma vontade delas, os peitos siliconados eram uma imposição para ser aceita entre as demais travestis e poder trabalhar ao lado delas nas esquinas. “Travesti, antigamente, era atitude e silicone”, lembra Vanessa. “Nós, novas, duas crianças, caímos nessa vida”, resume Vanessa.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Situações como as vividas por Andressa e Vanessa estão longe de ser uma exceção para a população trans. O preconceito duplo, enfrentado em casa e na escola, costuma expulsar as pessoas trans para as ruas, às vezes bem cedo.

“Muito precocemente, com dez, onze, às vezes até com nove anos, essas pessoas estão fora de casa. Estão sem essa rede de apoio familiar e no Brasil não tem assistência social”, define Márcio Zamboni, doutourando em Antropologia Social pela USP (Universidade de São Paulo) e integrante do Grupo de Trabalho “Mulher e Diversidade” da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Nas ruas, Andressa se tornou dependente química e acabou presa por tráfico de drogas. “Ser travesti não é fácil, é difícil. Quem aguenta a pressão aguenta, quem não aguenta se mata”, diz. Assim que chegou à prisão, autuada por tráfico de drogas, rasparam sua cabeça, removendo o cabelo que, na época, batia em sua cintura. Era uma época em as presas travestis eram obrigadas a se vestirem como homens.

“O presídio é como se fosse uma faculdade. Ou você aprende ou você não aprende. Você está ali para decidir o que quer da vida. Se você continua no crime ou na paz. Você tem duas opções, a cadeia ou cemitério. Para não escolher nenhum dos dois, preferi ficar na rua, no meio da minha população”, afirma, a respeito da decisão que tomou no cárcere.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Hoje vivendo em Itaquaquecetuba (Grande SP), no Parque Viviane, Andressa sonha em retomar os estudos para “ser alguém na vida”. Enquanto isso não acontece. ela segue na prostituição. Uma parte do que ganha vira doação para pessoas mais pobres e necessitadas do que ela, por meio da Associação Nova Esperança Parque Viviane, ONG da qual ela faz parte.

Leia também: Entenda: identidade de gênero e orientação sexual

A generosidade, por sinal, é uma qualidade sempre muito lembrada por quem conhece Andressa. “Ela divide tudo com todo mundo”, conta Vanessa. Outra amiga dela, Tiffany Escave Nato. relata que uma vez visitou Andressa e notou que ela só tinha dois peixes dentro de casa, mas mesmo assim os dividiu com visitas que recebeu. “Achei aquilo lindo. Não esqueci nunca mais”, diz Tiffany.

Apesar de toda a violência e incompreensão por que passou com sua família, Andressa conta que perdoou seus familiares e sempre faz questão de enviar a eles parte do que recebe com os programas, feitos dentro de motéis baratos e de carros ou em um terreno baldio, “um verdadeiro lixão”, como define. “E assim eu vou vivendo a vida”, afirma, dizendo que essa rotina, apesar de tudo, é a realização de um sonho. Um sonho? “Sim, era o meu sonho. Viver minha vida e poder ajudar minha mãe e meus irmãos.”

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

 

uma série original pontejornalismoprodução executiva iracemarosa filmesprodução geral  pontejornalismo e iracemarosa filmes coordenação geral de projeto Antonio Junião • coordenação editorial Fausto Salvadori • produtor executivo/diretor de video  Anderson Jesus • produtora executiva/ assistente de direção de video  Nidia Gabrielle • reportagem e pesquisa Claudia Belfort • foto  Daniel Arroyo

© Ponte Jornalismo 2020